Capítulo 1
Era uma vez dois meninos muito amigos, o Zezinho e o Ricardinho. Andavam sempre juntos, nos intervalos da escola, ao final do dia antes de terem que se separar para ir cada um para sua casa, ao fim-de-semana e até durante alguns dias nas férias grandes de verão.
O Zezinho e o Ricardinho partilhavam o gosto pela leitura: trocavam revistas, livros juvenis, postais, catálogos das mais variadas áreas. E escreviam umas coisitas, também.
Ambos adoravam gastar dinheiro da sua mesada em caderninhos novos, com capas coloridas decoradas com desenhos de carros de corrida, computadores, super-heróis, bolas de futebol do benfica e do sporting e pranchas de surf da Billabong.
Era nestes caderninhos variados que o Zezinho e o Ricardinho jorravam as suas ideias mirabolantes, pouco conhecidas do resto do seu mundo. Eles não confiavam os seus dotes da escrita a qualquer fedelho que aparentasse ser seu amigo. E quanto às raparigas…nem vê-las. Elas faziam parte de um mundo à parte do seu, nem elas se interessavam por eles, nem eles queriam saber das miúdas parvas que só queriam saber da última moda. Não, senhor! Os seus devaneios eram apenas para eles os dois.
O Zezinho era organizado, limpinho na escrita, raramente borratava as linhas onde debitava os pensamentos que lhe voavam na mente. Podia dizer-se que brincava com as palavras como se sempre o tivésse feito desde o dia que nasceu. E só mesmo quando chegava à última página do seu caderninho do momento é que comprava o seguinte, nunca fugindo à regra das capas coloridas com imagens “à homem”. Já o Ricardinho era algo atabalhoado: escrevia em vários caderninhos em simultâneo, por vezes misturando os diversos devaneios nos vários cadernos. Sendo bastante imprevisível, nem ele próprio sabia o que ía escrever ou qual dos caderninhos seria o escolhido do dia. Contudo, revelava sempre uma pontinha de génio e uma imaginação delirante.
O Zezinho e o Ricardinho eram os leitores um do outro. E o sonho de ambos era, um dia, quando crescessem, escrever algo em conjunto, que fosse valorizado por muitos e talvez até ser publicado e conhecido mundialmente. A sua forte amizade era conhecida de todos os habitantes daquela pequena aldeia, que nunca duvidaram que tal parceria desse os seus frutos e um dia viessem a ter naquela aldeia remota dois vencedores de um qualquer prémio literário. Os velhotes da tasca situada ao lado da igreja gostavam imenso de cavaquear com estes dois catraios. E estes, por sua vez, adoravam ouvir os mais velhos, com quem se riam, aprendiam coisas giras sobre os dias de “no meu tempo…” e em quem por vezes se inspiravam para eles próprios escrevinharem algo nos seus caderninhos. Eles sabiam que tinham um longo caminho a percorrer, como as suas mães faziam questão de lhes lembrar amiúde: “Têm que comer muita sopa, peixinho cozido e grelos antes de conseguirem escrever alguma coisa de jeito e fazerem-se uns homenzinhos!”
Um dia, o Zezinho e o Ricardinho decidiram fazer uma promessa. Juraram um ao outro que metade do seu primeiro ordenado ganho limpa e arduamente seria colocado debaixo dos colchões das suas camas e que 25% do ordenado dos 10 meses seguintes teria o mesmo destino. E para quê, perguntam vocês? Só assim, pensavam eles, seriam capazes de comprar um computador já com ligação ADSL à Internet, onde pudessem escrever, publicar e partilhar com o resto do mundo as suas pérolas da escrita, sem estarem sujeitos às restrições impostas por editores, a “falhas técnicas imprevistas” ou mesmo à falta de papel e tinta. Só assim podiam eles ver o seu sonho concretizado.
Capítulo 2
O Zezinho e o Ricardinho continuaram grandes amigos ao longo da sua adolescência. Apesar do gosto comum na leitura recíproca e na escrita, eles eram dois cachopos bastante diferentes. Senão vejamos:
O Zezinho era um moço extremamente bem educado e refinado. Era também muito erudito, não fosse ele um escritor amador e em todas as circunstâncias escolhia as palavras a usar. Ele era uma daquelas pessoas que tinha nascido com o dom da palavra e auguravam-lhe um bom futuro, talvez como advogado de cidade ou até político. Contudo, o Zezinho nunca virava as costas a uma luta de punhos e nem a uma de palavras, seja por que motivo fosse. Estava-lhe no sangue não resistir a uma provocação, especialmente quando achava que tinha razão – o que acontecia sempre. E quantas vezes não se meteu ele em sarilhos à conta desta sua característica de guerreador. Muitas vezes, saiu vitorioso das suas batalhas de palavras. Menos vezes saiu vitorioso quando se tratava simplesmente de uma guerra de punhos. Muito olho negro e pisaduras nas canelas teve que tratar a sua mãezinha! Mas ele orgulhava-se de quem era, e dizia que nunca mudaria, só às portas da morte!
Já o Ricardinho era um puto bastante mais recatado. E mais multifacetado também. Apesar da grande amizade que o unia ao Zezinho, o Ricardinho tinha uma vida paralela totalmente desconhecida do amigo. E só com alguma ginástica de horários nocturnos é que o Ricardinho conseguia esconder esta faceta do seu grande amigo, que de burro nada tinha, mas quanto a isto andava mesmo a ver navios. Era à noite, já a altas horas, que o Ricardinho se dedicava à escrita de contos góticos. A maior parte bastante aterradores para o comum dos leitores e talvez deprimentes. Mas a ele dava-lhe um gozo tremendo ter poder sobre a Noite e sobre a Morte, sobre as figuras negras que escolhia para protagonistas dos seus enredos macabros.
Capítulo 3
Um dia, o Zezinho e o Ricardinho, algo saturados das mesmas companhias e das mesmas rotinas naquela aldeia remota dum qualquer país à beira do Atlântico, decidiram pregar uma partida aos velhotes, velhotas, amigos, amigas e seus familiares.
Simplesmente desapareceram, apenas com um dia de diferença. Não foi nada que planeassem às escondidas, aconteceu. Sem dizerem nada um ao outro, foi cada um para o seu lado.
De início, ninguém estranhou: já estavam acostumados aos súbitos desaparecimentos destes dois fedelhos e sabiam que eles voltariam a aparecer, habitualmente com novas aventuras para partilhar com os velhotes da tasca da aldeia. “Tudo invenções”, diziam estes, “…a estes falta-lhes um bom par de estaladas que é para ver se vão ao sítio”, diziam outros.
A verdade é que desta vez parecia ser diferente: nem sinal deles e já lá iam 6 dias. O suficiente para até os mais rezingões se começarem a preocupar com a ausência dos putos esquisitos que só queriam saber de papéis e historietas diabólicas. Teriam sido levados pelo vendaval da semana anterior? Teriam sido raptados por extra-terrestres? Teriam ido com o azeiteiro que passava na aldeia às 4ªs-feiras de manhã e que gostava de dar um doce às crianças que o rodeavam? Teriam resvalado pela falésia abaixo numa das suas passeatas sem destino? É que desta vez estavam todos às escuras, quanto a esta estranha “desaparição”, como lhe chamou o Padre Benjamim na última homília. Mistério…
Capítulo 4
Sem mais nem menos, sem nenhum sinal que os antecedesse ou fizesse prever a sua vinda, tanto o Zezinho como o Ricardinho voltaram a aparecer na aldeia que os tinha visto nascer. Disse quem apreciou a aproximação daqueles dois “estranhos” que eles não pareciam ser nada de confiança: o seu aspecto de vagabundos famintos, vestidos de negro da cabeça aos pés, a precisarem de levar com uma mangueirada pelo costelo abaixo, fez voltar muitas cabeças para trás. E de facto, ao princípio, ninguém os reconheceu. Estavam mais altos, mais espadaúdos. Um tinha deixado crescer o seu cabelo escuro e trazia-o atado num rabo-de-cavalo sebento, diga-se. A barba ainda rarefeita, espalhada aqui e acolá, já lhe dava um certo ar de rapazola gingão, de alguém que já apreciava prazeres terrenos. Estava magrito, notavam-se-lhe os maxilares salientes, bem como as mãos compridas, com dedos finos e unhas algo sujas e maltratadas. Já o outro parecia não ter crescido nem um centimetro; continuava o meia-leca do costume, mas com mais 15 quilos em cima, à vontade. As bochechas bem rechonchudas e vermelhas, sinal de saúde, não enganavam ninguém: por onde quer que ele tivesse andado, este rapaz tinha tratado muito bem de si próprio. Cabelo aparado, face barbeada, sorriso de orelha-a-orelha…bem diferente do rapazito introvertido de há uns tempos atrás. Traziam ambos sacos de viagem, bem recheados, com quê é que não se percebia.
E lá vinham os dois, estrada acima, pela única estrada que cortava a aldeia, numa alegre cavaqueira, a esbracejarem, com passos firmes, como se regressassem a casa num dia normal. Cumprimentaram amigavelmente quem os micava e sobre eles cochichava e dirijiram-se às suas casas, ambas situadas no final da ruela. E só assim é que os velhotes e as velhotas, sentados nos seus bancos de pedra, extensões das casas, com ar de embasbacados, de quem tinha visto fantasmas, finalmente reconheceram aqueles dois gaiatos que, do mesmo modo que desapareceram, repentinamente apareceram.
Capítulo 5 - analepse
O mistério adensava-se à medida que o tempo voava e nem sinal dos dois grandes amigos, do Zezinho e do Ricardinho. Nem os panfletos espalhados pelas aldeias vizinhas com as suas fotos e informação pessoal nem os apelos feitos do altar abaixo pelo Padre Benjamim deram quaisquer frutos. As buscas efectuadas pela polícia local foram inconclusivas, visto os rapazes terem desaparecido sem deixar rasto. O que quer que lhes tivesse acontecido iria para sempre ficar no segredo dos deuses e quaisquer suspeitas seriam puras especulações.
Pois assim pensavam as gentes da aldeia. Isto porque havia uma pessoa que sabia muito bem o que lhes tinha acontecido, para onde é que eles tinham ido, como foram e onde estavam naquele preciso momento. Na verdade, a padeira da aldeia era a única que tinha conhecimento dos planos dos dois mafarricos. Era na sua padaria, ao final da tarde, que por vezes os dois rapazes divagavam, versejavam, sonhavam e planeavam o seu futuro. Ora, esta senhora, Dª Antónia de sua graça, já entradota, mas muito vivaça, tinha um olho de lince e nada escapava aos seus ouvidos. Não se intrometia em assuntos de terceiros, mas retinha tudo o que lhe era permitido ouvir. E não foi preciso voltar muito atrás no tempo para juntar as peças todas do puzzle no que àqueles rapazes dizia respeito: eles estavam saturados das suas rotinas e ansiavam por aventuras, qualquer tipo de aventuras, qualquer coisa que os obrigasse a sair daquela aldeia decrepita e cheia de gente velha em idade e mentalidade. Desde sempre leitora acérrima de enredos policiais e detectivescos, foi quem os tinha ajudado a planear a grande fuga, a elaborar um plano tão perfeito que só com a sua ajuda explícita é que alguém seria capaz de deslindar todo este mistério. E só por um deslize de língua, cometido no confessionário, é que se descobriu a parceria.
A Dª Antónia descobriu igualmente que afinal o tal segredo da confissão, apregoado pelos crentes católicos, é um segredo exactamente igual a todos os outros: corre a sete ventos quando menos se convém.