O meu avô materno chamava-se Valdemar. O meu avô Valdemar era alfaiate, brasileiro de nascença e perneta por infortúnio da vida. Sempre o conheci assim, e confesso que não consigo imaginar como é que a minha avó Elisa conseguiu, aos 15 anos de idade, sentir seja o que for por alguém fisicamente diferente (à falta de melhor termo que não tenha sentido negativo) e com quase o dobro da idade dela. O meu avô brasileiro e perneta, após umas aventuras na sua terra natal, estabeleceu-se em Portugal com um negócio que, à data, se apresentava promissor e como garantia de ganha-pão da família. A alfaiataria que refiro num texto anterior era dele e era para lá que eu ia ao final do dia, após os meus dias de escola. Era lá que encontrava toda a minha família (mãe, avó e avô, tios), à excepção do meu pai, que esse decidiu ir por outros rumos. O meu avô Valdemar era mau como as cobras e durante muitos anos usou e abusou da sua muleta no lombo da minha avó. Até ao dia inesquecível para ambos em que ela decidiu dar-lhe a provar do próprio remédio...e foi mesmo remédio santo para ambos. Felizmente nunca assisti a estas cenas familiares, mas ouvia falar. Era nesta mesma alfaiataria que, ao final do dia, brincava com a minha grande amiga de infância enquanto a mãe desta trabalhava numa fábrica. Já a minha mãe era uma privilegiada - dizia o meu avô, seu patrão - por não ter que sair de casa nem ter que cumprir horários rígidos. De facto, a minha mãe tinha um horário flexível, tão flexível que fazia imensas noitadas como costureira à conta de ser tão privilegiada e filha mais velha de patrão, com a grande obrigação de ajudar no sustento dos mais novos. A alfaiataria era apenas mais uma divisão da casa dos meus avós maternos. A sua porta de entrada era também a porta de entrada da casa de família, e como tal, por aí entravam vizinhos, amigos e clientes, homens e mulheres à procura de fatos por medida, cortinas, toalhas de mesa, fatinhos para a comunhão dos filhos e obras de costura afins. Foi neste ambiente, de carrinhos de linhas, retalhos, réguas, cheiros de cozinha, vida familiar, bisbilhotices de aldeia que eu cresci. Não tenho qualquer saudade destes tempos cinzentos, opressivos, de dificuldades económicas. Nem tudo era mau, nem o meu avô era sempre o diabo em pessoa. Ensinou-me, com paciência, a jogar à sueca e era com ele que, Primavera adentro, eu me sentava à soleira da porta e observava e comentava quem passava na rua. As seis da tarde, hora em que as pessoas saíam das fábricas, era a sua hora favorita. Era um dos seus passatempos favoritos: observar o movimento das ruas. À medida que os anos lhe caíam em cima, e porque uma alimentação totalmente desregrada o mandou para a cama ( o seu outro passatempo era dormir imenso, nesta fase da sua vida), ficou bastante menos activo, física e mentalmente. O seu aniversário continuava a ser festejado e eu fazia questão de lhe fazer notar a minha presença, caminhando sorrateiramente até ao seu quarto onde ele dormia a sua sesta e então parabenizava-o sonoramente com um "PAAAAARAAAABÉEENNSS" que o deixava atordoado e mal disposto para o resto do dia. Outra maneira de lhe recordar tal dia especial era eu tocar flauta bem perto da sua cabeça. Resultava sempre: tinha avô acordado até às tantas. Não era uma personagem agradável e tinha muitos caprichos. Um deles era o de prometer anualmente uma visita a Lamego e uma oferta choruda à Nossa Senhora dos Remédios. Ele prometia e cumpria com a doação da oferta à sua santa preferida, mas para isso incomodava o resto da família, que tinha que o acompanhar numa espécie de excursão com farnel e garrafão. Estas viagens valiam pelas visitas que se faziam à família distante de Lamego, que só víamos de ano a ano nestas ocasiões. Belos presuntos e deliciosas cerejas se comeram nestas alturas!
Como os tempos mudaram! A alfaiataria não existe, os alfaiates são uma espécie em vias de extinção - como referiram as Condutoras de Domingo da Antena 3 -, o sentido de família é outro, as viagens continuam com outra frequência e com outros destinos. Apesar de tudo, prefiro assim.
Como os tempos mudaram! A alfaiataria não existe, os alfaiates são uma espécie em vias de extinção - como referiram as Condutoras de Domingo da Antena 3 -, o sentido de família é outro, as viagens continuam com outra frequência e com outros destinos. Apesar de tudo, prefiro assim.