O Ricardinho não alcançou tão longe; nem sequer saiu do país. Mesmo assim, conseguiu chegar à capital, a cidade de que tanto tinha ouvido falar e com a qual sempre tinha sonhado, desde que leu “Uma Aventura em Lisboa”, com a tenra idade de 6 anos. Desde sempre se mostrou um miúdo intelectualmente precoce, com gostos literários distintos da maioria dos seus colegas de escola, semelhantes apenas aos do Zezinho devido ao gosto comum pelo obscuro, pelo mórbido, até pelo terror. Com 9 anos, já tinha lido Edgar Allan Poe traduzido, e, na brincadeira, os seus coleguinhas mais cruéis, chamavam-lhe “o adorador de monstros”.
Mas regressemos à capital lusa... Lá, teve a grande sorte de se cruzar na estação de Santa Apolónia com outro miúdo, de aspecto franzino e algo carrancudo, com quem logo sentiu bastante empatia, após uma horita a conversarem sobre os planos que este tinha. O que até estranhou, pois na aldeia nunca foi dado a grandes amizades e a momentos de exteriorização, à excepção do amigo Zezinho. Talvez este desconhecido fosse a sua primeira âncora na grande cidade. E de facto, assim se revelou. O tal gaiato, um ano mais velho, estava decidido a impor-se no mundo artístico, a começar pelo teatro. Pipinho era o seu nome.
Ora, o nosso Ricardinho queria ser fotógrafo profissional e ainda na aldeia, tinha conseguido poupar o suficiente para comprar uma Leica analógica, composta por cerca de 1200 peças, agregadas manualmente, de fabrico quase exclusivamente português. Uma máquina fotográfica das antigas, portanto. Que ele não era nada dado a estas modernices do mundo digital. Ele gostava das imagens naturais, sem quaisquer malabarismos visuais emprestados por “photoshop”. E gostava especialmente de fotografia a preto e branco. O seu portfólio visual, que andava sempre com ele, às costas, acompanhou-o nesta aventura lisboeta, pois não se sabia quando é que ele teria oportunidade de mostrar a alguém do mundo da imagem as suas fotografias paisagísticas e das pessoas sorridentes da sua aldeia.
O Pipinho e o nosso Ricardinho decidiram procurar um espaço suficientemente grande, mas não demasiado caro – talvez umas águas furtadas - que pudessem arrendar ao mês, de modo a poderem desenvolver e exibir os seus dotes artísticos. Diz-se que a sorte protege os audazes e no caso deles, tal concretizou-se, pois, após 4 noites primaveris a dormir ao relento, sempre perto da Estação de comboios (havia casas de banho onde podiam desenrascar-se no que toca a higiene pessoal), encontraram um pequeno apartamento, pobremente mobilado mas com o suficiente para ambos sobreviverem, com 2 quartos e uma sala suficientemente grande para se sentarem mais duas pessoas à mesa. Só faltavam as cadeiras, pois as existentes, já encostadas à parede, não aguentariam nem com um lingrinhas como o Pipinho, quanto mais com pessoas de porte físico normal. O apartamento localizava-se perto do Castelo, num quarto andar, o último do prédio que não tinha elevador, e da pequena varanda da cozinha avistavam-se as centenas de antenas que decoravam os telhados lisboetas. Foi este pano de fundo que o Ricardinho fotografou a preto e branco, com o Tejo e a Ponte Salazar ao fundo, e que logo que pôde, revelou e colocou numa parede do quarto.