sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O meu tio lisboeta comunista (texto para mais tarde recordar)

É/foi, segundo as palavras ditas, alto e bom som para quem quisesse ouvir, pela minha falecida mãe (portanto, seu irmão), o "rico filho" da minha bem viva avó. Esta esteve grávida quatro vezes e pôs no mundo três crias, pela seguinte ordem: a minha mãe que fez apenas a 4ª classe porque era a mais velha dos três e tinha que contribuir para o orçamento familiar, o meu tio lisboeta comunista licenciado em Direito e a minha tia filosofa precocemente rebelde que me ensinou a andar de bicla e com quem eu ouvia Pink Floyd e cujos cadernos de escola eu admirava.
Hoje escreverei apenas sobre ele. 
O meu tio lisboeta comunista não é lisboeta. Apenas emigrou para lá após terminar o seu curso de Direito em Coimbra. "E comunista?" - perguntam vocês? Eu acho que, teorica e ideologicamente, ele ainda é comunista. Na prática, já há muitos anos que acho que não é; é uma daquelas pessoas a quem a expressão "esquerda caviar" assenta que nem uma luva, apesar dos próprios detestarem esse epíteto. Aprecia objectos bons que a sociedade consumista lhe oferece, alguns dos hábitos luxuosos que o ordenado dele lhe permite comprar e um estilo de vida lisboeta que não se coaduna propriamente com a divisão igualitária de bens para todos sem excepção.
Ao longo dos meus 43 anos de vida, eu sempre admirei este meu tio, passando por diversas fases: 
-quando era catraia, o meu tio "lisboeta" era aquela figura que eu só via duas ou três vezes por ano quando ele decidia vir visitar a famelga à aldeia, ou à província, aliás, como o ouvi (e à esposa, oriunda duma aldeia serrana) dizer. Ele era aquela figura adulta que vivia lá longe, na capital do país onde tudo se passava, culto, literato, que usava uma linguagem impressionante, cheia de "palavras caras", que parecia estar actualizado sobre tudo o que era tecnologia, ciência, informática e sei lá que mais. Ainda hoje ele é assim, pois gosta de me mostrar que anda a par das últimas modas tecnológicas. E a verdade é que ele, hoje com quase 65 anos, tem um desses com imensas aplicações para isto e para aquilo e eu mantenho-me fiel ao meu telemóvel pré-histórico que nem acesso à Internet tem activado (porque eu não quero, adianto já). 
-quando eu era adolescente / jovem eu via-o como aquela figura adulta licenciada, com um canudo e um bom emprego e muito trabalho, com um escritório de advogados na Rua Alexandre Herculano (os lisboetas sabem a que rua me refiro, certamente), com contactos diários com sindicalistas, criminosos, pessoas que se queriam divorciar e nomes sonantes do mercado empresarial lisboeta. Um exemplo a seguir, em termos de estudo e de independência de vida, caso eu própria quisesse ser financeiramente independente, tal como os meus pais me educaram e que eu consegui atingir aos 23/24 anos.
-com três décadas de vida, eu já o via como aquela pessoa tão adulta quanto eu, apenas mais velho, com menos cabelo, a face um pouco mais larga, com gosto por discussões em família sobre política, ciência, literatura, religião e outras assuntos e com uma preocupação exagerada em não engordar por comer demais (coisa que é impossível acontecer na dita "província", digo já). Continuei embasbacada a ouvi-lo discursar, a contar piadas machistas à mesa durante as refeições familiares anuais.
-hoje sinto que estou ao nível do meu tio lisboeta comunista, no que toca a debates sobre alguns temas, não sinto receio de ser ridicularizada por abrir a boca durante as discussões familiares e expor-lhe os meus pontos de vista discordantes dos dele.
Vi-o a sofrer pela morte do pai, a questionar muita coisa quando morreu a irmã mais velha e hoje vejo-o a interrogar-se sobre a morte dele e o seu propósito presente. Às vezes passa por momentos deprimentes, que continua a disfarçar com as tais piadinhas de mau gosto e gargalhadas histriónicas.
Continuo a admirá-lo, com todos os seus defeitos de adulto, e aprecio hoje muito mais a sua companhia do que apreciava quando eu era catraia e ele me oferecia pequenos presentes oriundos da capital.

Pronto, tá bem! Mas eu já nem reconheço as entranhas disto!

Save water, drink wine! Ando muito ecologista! E estou viva! Ao contrário da outra que deu de frosques sem ai, nem ui! E tinha muita coisa p...