Com alguma expectativa iniciei a leitura dum clássico da literatura portuguesa que, felizmente, não é lido nem interpretado durante a escolaridade obrigatória. Felizmente, porquê? É que aquelas páginas usam duma linguagem arcaica, irritante, muito pouco facilmente perceptível pela maioria dos jovens, digo eu. Estou ainda a lê-lo e apetece-me ter ali ao lado um dicionário de português arcaico.
"Mas então porque estás a lê-lo?" - perguntam vossas excelências. Ao que respondo que me foi sugerido por alguém cujas sugestões literárias normalmente aprecio, desde que não incluam poesia. "Ok, boa razão; mas eu também já te sugeri livros e não te leio aqui a discorrer sobre eles" - retorquem alguns de vós. Ao que eu contra-argumento que é verdade, verdadinha. Mas nunca nenhum de vós me disse que "aquele tipo de humor, Camiliano, é a tua cara." Pronto: bastou isto para eu querer saber "como era a minha cara". Até pensei inicialmente, quando comecei a aperceber-me da natureza rural, simplória e saloia, inocente, ingénua, honesta e frontal do Calisto que era a isso que o meu interlocutor virtual se referia. Mas não: era mesmo ao humor mordaz e à ironia implícita, à linguagem rebuscada e termos arcaicos que caracterizam toda a obra, ao empolamento de linguagem usada para descrever situações simples, à luz dos nossos dias.
Se dele escrevi, sobre ela devo partilhar, pois a mulher honrada enaltecida deve ser, quando mais não há a esconder. Ora a nossa Teodora é a típica prima, casada pela família com um primo mais velho - unindo assim duas famílias de renome - fadada para a casa e para o gado, que de teatro e livros e música e ascenção social pouco sabe e menos parece querer saber. Sentiu-se despeitada, e com razão, no seu orgulho de mulher casada que permite ao marido ir parlamentar para a capital portuguesa do século XIX. Mulher de pêlo na benta, com eles bem no sítio, vai de bater à porta da casa onde o seu Calisto tinha instalado uma nada inocente e dissimuladamente oportunista prima brasileira, dona de beleza física única que, afinal, se tornou obstáculo para trilhar a carreira de ensinar línguas, mas que acirrou no nosso serrano marido, fiel em actos e pensamentos, até aos 44 anos, sentimentos de enamoramento e paixão que nunca tinha sentido pela legítima esposa. Quando a esposa bate à porta da amante, encontra-se esta e o esposo daquela já em Paris, terra anteriormente encarada por ele como do Demo. Como os tempos mudaram! De regresso a Miranda, trata então, ela, a esposa traída e ignorada, de procriar com um outro primo e criar o filho que nunca teve com o primeiro
"Mas então quem é o Libório?" - perguntam vocês novamente. Pois o Libório é o supra-sumo da oratória parlamentar, o mestre da palavra, o dono de verborreia intragável até para o nosso Calisto que intencionalmente dele galhofa em público, fazendo-se de sonso no que toca a perceber tal linguagem obscura declamada por uma voz portuense, invejosa dos luxos da Capital que afinal até deseja para a sua cidade-natal. Torna-se o concorrente, nos bancos parlamentares, do nosso serrano favorito, degladiando com ele os melhores e mais eloquentes discursos e - atrevo-me a dizer - atraíndo público cada vez mais faminto das palavras de um e de outro, mas especialmente do serrano das polainas capaz de mostrar peito e botas de bico aguçado aos lisboetas seguidores das modas parisienses. Dele o Calisto não tem medo, pois pede constantemente a palavra para denegrir o que diz o portuense. E com sucesso, diga-se!
Quanto à "Comp.ª", desafio aqueles e aquelas de vós que não se deixam enfadar com obra de séculos, que se aventurem a descobrir sobre os costumes citadinos e como é que o Anjo caiu e bateu no fundo do poço das imoralidades. Tenho dito!