À noite apreciava imenso sentar-se em frente ao Atlântico, sem pensar em grandes preocupações, só a viajar mentalmente ou a deixar o seu corpo relaxar estendido na rede brasileira que milagrosamente tinha conseguido pendurar na sua ínfima varanda da sala. O mar fazia-lhe falta. O vento e o barulho das ondas, lá ao longe, embalavam-na e levavam-na e escrevinhar o turbilhão de imagens e ideias que a assolavam durante as longas noites. Se por vezes apenas rabiscava umas imagens aparentemente sem sentido para um qualquer estranho, outras vezes, deliberadamente, desenhava formas humanas, caras expressivas, pares de pessoas, quase sempre a sorrir, em harmonia. Havia noites de verão em que gostava de fazer um exercício de palavras tão infantil que quase sentia vergonha de si própria por ainda revelar tais hábitos de criança: o encadeamento e associação de palavras que só para ela faziam sentido. Ultimamente, estas associações resultavam numa corrente algo mórbida e deprimente. Tinha perfeita consciência de tal. Mas tal havia de mudar. Há que dar tempo ao tempo. O último inverno, o seu primeiro passado naquele cantinho, foi extremamente penoso. A própria estação do ano já é por si só, na sua opinião, a mais triste das quatro, aquela época em que as pessoas se poderiam sentir mais sozinhas no meio da multidão. Era o seu caso. O acidente mortal, inesperado como qualquer acidente de viação, naquela terceira noite do mês de Janeiro, seguido de umas mini-férias de duas semanas no hospital local, obrigaram-na a repensar a sua passagem efémera. O que antes se afigurava como garantido, como rotineiro, como constante do seu dia-a-dia, não o era mais. E tudo por culpa de um condutor, se é que se podia chamar alguém sem carta de condução de tal, que "só queria ir dar uma voltinha ao bairro para experimentar o carro novo do meu pai". Nunca se irá esquecer da pancada estrondosa que sentiu do seu lado direito quando passavam por um cruzamento situado na avenida que corria paralelamente ao mar. Avenida essa habitualmente percorrida a pé, a dois, ao final do dia ou após o jantar. Naquele dia, durante o qual tinham constantemente trocado mensagens via telemóvel, tinham combinado uma noite especial, totalmente pensada por ela. Seria uma surpresa parcialmente conhecida por ele. E de facto, foi especial, horrivelmente especial, tão especial que se tornou inapagável da sua memória. Durante longos segundos perdeu noção de onde estavam, onde iam, porque estavam elegantemente vestidos, do que lhes tinha acontecido. Até que olhou para o seu lado esquerdo e viu-o, ensanguentado, o pescoço numa posição bastante estranha, os olhos semi-abertos. Sentiu-lhe a respiração, o pulso. Sabia o que procurar. O curso de primeiros socorros, frequentado por insistência do seu pai, enfermeiro, era-lhe agora ironicamente útil. Nada, não sentia nada. Apenas via o sangue a descer lentamente pela cabeça dele. Queria esquecer tudo, claro que só podia ser um sonho!
Mas não! Tinha sido bem real. As cicatrizes ao longo do lado direito do seu corpo e até nas costas eram a prova mais visível de que a morte a tinha rondado. Mas ainda não tinha chegado a sua vez. Não naquele dia. Não para si. Mas mais valia, pensou posteriormente.
Tanto sangue logo pela manhã?
ResponderEliminarLIVRO! LIVRO! LIVRO! LIVRO! LIVRO!
ResponderEliminarApenas sugiro que, p. ex., aquiNunca se irá esquecer da pancada estrondosa que sentiu do seu lado direito quando passavam por um cruzamento situado na avenida que corria paralelamente ao mar "despormenorizes" um pouco, tenta reduzir à pancada (o essencial), e deixes cair o lado direito/esquerdo numa ou outra passagem. Digo eu, que não vou ser quem vai editar os teus contos :-)
bem, andas a dar na escrita. E o teu potencial é imenso! Estou a gostar muito dos teus contos. A tristeza deste causou-me arrepios.
ResponderEliminarParabéns.